Os
deuses, no céu ou na penumbra, brindam-nos frequentemente
com a sua eterna ingratidão. Deleitam-se com a obra das nossas vidas e
não
pagam nada por isso. Mas, por alguma razão, o cenário é sempre perfeito. Na
relatividade das coisas, as vaidades desajeitadas, as desproporções
físicas, a
falta de agilidade, o descuido involuntário, a timidez, a solidão, uma
rosácea, as cicatrizes, a calvície, a falta de atrevimento, uma sombra... tornam os
seres desinteressantes e, por demais, misteriosos e atraentes. Quando nos
debruçamos sobre eles, assim de mansinho, sem os assustar, quando ouvimos as sombras das suas dúvidas, a luz das suas vozes, longe de qualquer caminho, entendemos de uma forma muito justa que a beleza é um
preconceito infantil. Há, escondidas nessas pessoas, a consistência do vasto e
escuro universo, a fasquia das intocáveis estrelas e a possibilidade legítima
de um horóscopo da vida e do amor
quinta-feira, 8 de outubro de 2020
Os deuses que há
Edward Hopper - Night shadow
terça-feira, 7 de julho de 2020
somos assim 8
Encontrar as pessoas de quem gostamos. Sem
marcação prévia. Sem planos. Sem datas. A qualquer hora. Sentir em si a alma a
surgir graças ao encontro. O momento a transformar o dia e, porque não, a
orientar a vida num outro sentido. Num melhor sentido. Sem que haja essa
vontade. Sem vontade. Malgré moi - não consigo uma tradução exata para a
expressão. Depois, a desmesura da ideia de que a vida possa ser digna sem que
isso seja intencional e a descoberta da possibilidade da perfeição que as
surpresas agradáveis proporcionam aos homens em momentos de acaso. A obsessão
da procura de um entendimento, impossível, de que esse mesmo acaso, cómodo,
neutro, inexpressivo, por vezes, se supera
quinta-feira, 12 de março de 2020
Poemas do silêncio 7
Parched Art (Porl Thompson and Andy Vella)
Encontro-me na frequência de umas
notas de música. O tempo é pretérito. Trôpega, a propositada distorção cambaleia, tropeça, entontece na torpe, vil, vida sonora. A melodia segue. Sibila, sílaba a sílaba. Blandícias e bátegas. Os graves, os agudos são
simultâneos. Sabem, as vozes mais silentes são as que mais gritam. Ouçam. O coração late. A caravana não passa. Os clamores são de alívio
domingo, 8 de março de 2020
"que se fodam os advérbios"
V. v. Gogh - "Campo de trigo com ceifeiro e sol"
Mote alheio: que se fodam os advérbios
Costumam ser apêndices
modificadores, embaraçosos pormenores que sagazes pintores reconhecem
com agilidade nas sintaxes longas e penosas. "que se fodam os
advérbios" e todas aquelas iguais locuções que valem apenas para quebrar os silêncios de uma
tarde soalheira de verão e se apontam na grita perturbadora dos churrascos em
família, nos bailaricos das terras de costumes bolorentos e nas audazes
palestras dos sermões culpabilizadores das manhãs mal dormidas de domingo.
Fiquemo-nos, saiba-se, pela tarde soalheira, sem apenas nem mal
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Poemas do silêncio 5
Edward Hopper - Sunday
Uma boca. A atenção das mãos. A
cor dos olhos que muda com a inclinação da luz. A espontaneidade inesperada do
gesto: a tristeza depois da presença, a revelação depois do grito. Um encontro
inesperado num lugar de desencontros. A distância depois das onze. A
criação do espaço impossível onde esse ser que nos habita saiba que existe. O
desconforto que a perfeição da beleza provoca. Uma frase lida ao acaso que traz de volta um mapa da alma ou que desperta a necessidade de morrer. Um desamor que fica para
sempre ligado a uma dor e a nós. A insuportável leveza dos risos das pessoas
distraídas
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