segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Poemas do silêncio 5



Edward Hopper - Sunday


Uma boca. A atenção das mãos. A cor dos olhos que muda com a inclinação da luz. A espontaneidade inesperada do gesto: a tristeza depois da presença, a revelação depois do grito. Um encontro inesperado num lugar de desencontros. A distância depois das onze. A criação do espaço impossível onde esse ser que nos habita saiba que existe. O desconforto que a perfeição da beleza provoca. Uma frase lida ao acaso que traz de volta um mapa da alma ou que desperta a necessidade de morrer. Um desamor que fica para sempre ligado a uma dor e a nós. A insuportável leveza dos risos das pessoas distraídas

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Poemas do silêncio 4 - Tautologia


Edward Hopper, Early Sunday Morning


Lembro-me de uma manhã de domingo e de uma rua onde nasceu essa manhã
Lembro-me de quando a mesma casa de agora era maior
Lembro-me de quando os insetos eram os brinquedos das crianças
Aquele incomensurável sussurro estereofónico das cigarras
Lembro-me de quando as horas se alongavam milagrosamente, arrastando-se pelas eletrónicas marcas da sombra que os velhos faziam no chão de pedra 
E as sazões pareciam infindáveis telenovelas de amor
Em casas sem luz nem água
Lembro-me de quando o calor do verão era uma voz
E o mar era o mar
E o sono o sono
E o pão pão

Lembro-me de coisas
Que permanecem aqui
Coisas sem forma nem passado
E que são a forma do passado


Por muito olvido que haja
Será tão-só olvido